A combinação de quimioterapia e medicamentos que estimulam o sistema imune a combater o câncer vem sendo cada vez mais adotada para controlar o avanço da doença em pacientes. Por outro lado, estudos clínicos mostram que essa associação tem aumentado os efeitos colaterais, entre eles a neuropatia periférica, caracterizada por dores, formigamento e sensibilidade ao frio nas mãos e pés, às vezes progredindo para braços e pernas. As reações podem levar à suspensão do tratamento.
A partir dessa observação clínica, um grupo de cientistas brasileiros pesquisou em camundongos os mecanismos que desencadeiam esse efeito colateral associado à combinação de dois medicamentos utilizados contra tumores, principalmente de pulmão e mama – o paclitaxel e os inibidores de pontos de controle da resposta imune (anti-PD-1/anti-PD-L1).
O quimioterápico paclitaxel, amplamente distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para diversos tipos de câncer, causa em parcela dos pacientes tratados uma série de reações adversas, como a neuropatia periférica. Já a terapia com os inibidores de pontos de controle da resposta imune revolucionou o cenário do tratamento contra o câncer devido a sua capacidade de promover respostas imunes antitumorais duráveis em pacientes com a doença avançada. No entanto, foi observado um aumento na incidência de efeitos colaterais limitantes em indivíduos que fizeram uso combinado dos medicamentos.
Os pesquisadores, então, buscaram entender os processos envolvidos nessa reação adversa. E descobriram não só o mecanismo ligado ao desenvolvimento da dor neuropática grave como também ao agravamento dos efeitos colaterais decorrente da associação das terapias.
O trabalho, realizado no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), foi publicado na revista científica Cancer Immunology Research. Abre caminho no futuro para novas investigações visando também o combate a dores ligadas a outros tipos de doenças.
Segundo a pesquisa, os inibidores de pontos de controle da resposta imune bloqueiam uma interação entre as proteínas PD-L1, presentes em células do sistema imunológico (macrófagos), e PD-1, receptores encontrados em neurônios. É justamente essa interação a responsável por inibir a dor neuropática (um reflexo de danos causados no sistema nervoso central e/ou nos nervos periféricos) provocada por paclitaxel, funcionando como um freio. Assim, o seu bloqueio acaba exacerbando o desenvolvimento desse efeito colateral.
Até então, essa interação neuroimune entre macrófagos e neurônios por meio das proteínas PD-L1 e PD-1 como um mecanismo de controle da dor era pouco explorada.
“Ainda não era clara a importância da presença do receptor PD-1 no neurônio e do papel que a interação com o ligante PD-L1 desempenhava para o controle da dor. Descobrindo que essa interação neuroimune pode atenuar o desenvolvimento da dor neuropática associada ao tratamento de câncer, acreditamos que seja possível explorar esse mecanismo em outros modelos de doenças”, diz Carlos Wagner Wanderley, pesquisador do CRID e primeiro autor do artigo ao lado de Alexandre Maganin. Wanderley recebeu apoio da FAPESP por meio de Bolsa de Pós-Doutorado.
O CRID é um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP. O estudo contou ainda com a participação de cientistas do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, ligado à Universidade de São Paulo (Icesp-USP), e do Hospital Albert Einstein.
“Já havia observações em estudos clínicos que imunoterapias combinadas a paclitaxel aumentavam a dor nos pacientes, sugerindo maior neurotoxicidade. Esse trabalho traz para a pesquisa básica um achado clínico visando entender melhor o mecanismo envolvido. O resultado se mostrou relevante”, afirma à Agência FAPESP o professor Thiago Mattar Cunha, um dos orientadores do trabalho juntamente com o coordenador do CRID, Fernando de Queiroz Cunha.
“O entendimento dos mecanismos envolvidos na potencialização da dor pela associação dos dois tratamentos permitirá o desenvolvimento de alternativas terapêuticas que previnam a dor e mantenham os efeitos antineoplásicos”, complementa Queiroz Cunha.
Em um estudo anterior, do qual Mattar Cunha também participou, já havia ficado demonstrado um dos mecanismos que originam os efeitos colaterais provocados por paclitaxel em pacientes com câncer. O resultado do trabalho apontou que a droga se liga e ativa um receptor celular, chamado C5aR1 (envolvido em doenças inflamatórias e tumores). Essa conexão é crucial para a origem dessa reação adversa do quimioterápico (leia mais em: agencia.fapesp.br/39395/).
Passos da pesquisa
Para induzir a dor neuropática, os camundongos foram tratados com paclitaxel. Maganin explica que foram avaliadas, por exemplo, a temperatura dos animais, a pressão nas patas, além de força e estímulos inflamatórios para demonstrar o processo de dor neuropática mais avançada nos animais.
Ao analisar o papel do eixo PD-L1/PD-1 na modulação da dor neuropática induzida pelo quimioterápico, os pesquisadores descobriram que os tecidos neurais expressavam as proteínas. No entanto, durante o desenvolvimento das reações adversas induzidas pelo tratamento com paclitaxel, houve um aumento da expressão de PD-L1 nos macrófagos do tecido nervoso periférico, especificamente na região do gânglio da raiz dorsal.
Além disso, foi observada que a administração exógena da proteína PD-L1 inibiu o comportamento de dor desencadeado pelo quimioterápico e outros estímulos dolorosos nos camundongos, sugerindo que a sinalização PD-L1/PD-1 atenuava a neuropatia periférica.
Os pesquisadores viram ainda que o uso combinado de anti-PD-L1 mais paclitaxel aumentou o desenvolvimento da neuropatia crônica nos animais, assim como observado nos pacientes.
“O impacto imediato da nossa pesquisa é que essa combinação de drogas já é usada em clínicas. Conhecendo essa relação, é possível tomar providências, identificando os pacientes com dor e adotando medidas para evitar o problema, como substituir o paclitaxel”, completa Maganin.
Recentemente, o grupo de cientistas iniciou um novo Centro para Pesquisa em Imuno-Oncologia (CRIO), por meio de uma parceria entre FAPESP, GlaxoSmithKline (GSK), Hospital Albert Einstein e a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto para trabalhar com a identificação de novos alvos terapêuticos e mecanismos de efeitos adversos relacionados ao tratamento do câncer (leia mais em: agencia.fapesp.br/38720/).
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.